Páginas

domingo, 23 de julho de 2017

TIAGO GUILLUL

Se houver historiador de música para os anos zero do novo milénio, ele terá de dizer que nesses anos, em Portugal rompeu o movimento Panque Roque do Senhor! Um acontecimento tão bizarro quanto exótico como normal para quem viveu o pós-modernismo. Começou com bandas Hardcore nos anos 90, evoluiu para o colectivo FlorCaveira que andou a fazer algum barulho nos media, ao ponto de já haver bandas cristãs a serem contratadas pela Universal. As origens do movimento são protestantes, sendo que já apareceu outro colectivo, Amor Fúria de origens católicas. Só falta aparecer o Rock Judeu e o Pop Allá se Portugal fosse mesmo democrático e laico (e laico!) mas como o Hip-Hop e o Kuduro (a música de pretos, como se dizia) só foram aceites há pouco tempo, prevejo o aparecimento dos Ali Babá Core em 2035 e os The Shalom All Stars em 2036. Comecemos por Tiago Guillul, e a sua estreia com Fados para o Apocalipse contra a Babilónia(2002) que é talvez o melhor dos seus discos iniciais [Mais dez fados religiosos de Tiago Guillul (2003) e Tiago Guillul quer ser o leproso que agradece (2003)], pois é o que consegue criar um ambiente mais intimista digno do melhor daquilo que se chama de "cantautores". O fado é mutante ou até residual (são apanhados mais tiques do que modelos - e ainda bem, pois não teria paciência para a merda dos fadunchos que empestam a nossa cultura), as letras são mundanas variando entre a autobiografia “Quis ser jornalista”, crítica social “Fado da minha vizinha” ou “Fado da Ana Russa”, de imaginário bíblico “Fado do Mar Vermelho” e de mensagem cristã “Fado do poço Samaria”. Muitas vezes o timbre lembra os Violent Femmes. Musicalmente tem uma base acústica mas que não o impede de recorrer ao computador para pequenos loops e ruídos, estas brincadeiras tecnológicas são mais evidentes nos Mais dez fados (...) que quase vai parar ao António Variações sem a líbido e mais próximo da catequese. Tiago Guillul quer ser o leproso que agradece, é um EP que se liga à electricidade roqueira. Tiago toca todos os instrumentos do roque (guitarra, baixo, bateria) mais alguns outros - para não dizer que no melhor espírito DIY é ele que faz o design dos discos além de produzi-los e editá-los! Gosto particularmente de “A Isabel é intelectual” («porque perdeu a virgindade na Feira do Livro»), além dos títulos “Tu tens o coração do tamanho do Salmo 119” (seja lá o que isso quer dizer). O quarto registo de Tiago Guillul - se ignorarmos o barulhento projecto Borbulhas Borboletas - é um grande disco Pope, um grande disco "lo-fi", iluminado por Deus, cantado em português como já ninguém tem a coragem de o fazer. Se o Panque Roque cristão é um estigma que Tiago se calhar até agradece e que se coloca cada vez que se fala do seu trabalho, e apesar de algumas músicas serem demasiado conotadas à (sua) Igreja (Baptista), como é o caso do glorioso hino épico “Igrejas cheias ao Domingo” - que fará qualquer pagão sentir-se revoltado! - por outro lado, Guillul usa este "estilo" a seu favor com a habitual inteligência e humor (o que quer dizer a mesma coisa) como assistimos na canção “Beijas como uma freira”. Não faltam boas músicas Pope num álbum de 15 canções, e apesar do torcer do nariz às mais religiosas, são 15 valentes canções, bem compostas e orelhudas - será que ele quer converter-nos mesmo!? Um lobinho com pele de carneiro? E por falar em animais, não faltam músicas dedicadas aos bichos (“Dentes de lobo”, “4ª-Feira de Cinzas”, “Diogo, és cão”, “Arranja-me um jumentinho”). E há provocações: «Se o país tivesse de arder seria pela minha mão / Não havia de sobrar nada (...) Portugal tornar-se-ia a lareira da Europa» em “A Lareira da Europa” e autobiografia na “Canção para o Rodrigo”, que apesar da melodia evangelista fala de cristas Panques nos tempos de liceu em que se ouvia Kurt Cobain... Uma daquelas músicas que quase apela a uma nostalgia "real" sem que se torne boçal ou lamechas, como acontece com o negócio da nostalgia. O álbum V seria o Remain in Light de Tiago Guillul, caso Guillul tivesse um Brian Eno a ajudá-lo. Este é o disco que deveria ser o "template" do Pop português há 20 anos atrás - curiosamente o citado disco dos Talking Heads é de 1980 - fazendo a eterna marca de que Portugal está atrasado mais de 20 anos em relação ao resto do mundo. Vamos por partes, de "panque" este V nada tem, é Pope do Senhor. Pope nostálgica devedora à New Wave e No Wave que investiram nas polifonias africanas para fazer um Pop novo e aliciante. Em Portugal, pouco aconteceu no que respeita a relações musicais luso-africanas. A Cesária Évora foi invenção dos franceses. Houve ausência deste continente musical nos media e em eventos públicos até os Buraka apareceram em 2006 para dar uma volta ao "som sistema", isto para resumir muito ao de leve a nossa ingratidão e racismo cultural. Guillul, panque roquer e pastor protestante, assumiu o paradoxo e em cooperação com outros alinhados trouxe a língua portuguesa de volta à música moderna portuguesa, em parte fez um exercício de memória dos anos 80 (não é à toa que Rui Reininho participa neste disco), mostrou que o DIY rende e no meio apostou demasiado no cantautorismo -o seu pecadilho menor, até porque Guillul nunca esteve completamente embrulhado nessa fossa de choramingas. Uma costela africana saia-lhe de vez em quando, agora brotou uma espinha completa, só lhe falta a bunda de preta! Samplou vários materiais evangélicos em loops, meteu a sua mensagem em letras Pop bem escritas e cá está o quinto volume de músicas Pop orelhudas e inteligentes. Falta-lhe é a agressão panque (esquecida por enquanto?) e a loucura Afro (a explorar no futuro? a soltar a franga?). Talvez seja um álbum de transição mas sobretudo é um álbum de coragem, afinal ele (acompanhado por Silas) gravou num estúdio profissional, o da Valentim de Carvalho, a "abbey road portuguesa". Talvez por isso esteja limpinho? Talvez para a próxima precisem de um produtor (de música electrónica) cromo do Norte para aquecer este mambo. Na versão vinilo de V foi incluído um CD-R grátis intitulado O Antes e Depois dos Gratos Leprosos, banda de Tiago & cia até 2005, antes dos Lacraus e dos sucessos mediáticos da FlorCaveira. As músicas foram reutilizadas ao longo da carreira das várias bandas de Guillul, sendo que em 2009 reuniram-se para regravar o legado. Este disco é o paradigma FlorCaveira antes de se estragar. Tiago Lacrau (ou Guillul ou Cavaco) foi a peça principal da FlorCaveira e da incontornável popularidade destes "cantautorismos", tendo desenterrado criaturas como o Jorge Cruz, aproximando este tipo de artistas à estrutura para dar força a um movimento que conseguiu temporariamente expurgar-nos a lembrança de atentados nacionais como David Fonseca ou Old Jerusalém. Para além de militante e activista, mostrou ser um exímio produtor “lo-fi”, alguém com uma natural apetência para gravar Pop seja no quarto seja num estúdio luxuoso. Admite que não tem perfil para ser artista Pop, desistiu o ano passado de dar concertos e até da FlorCaveira que criou e desenvolveu. O "Protestante T" tem mais que fazer do que lidar com o mundo parvo da "indústria da música Pop" mas também vive de forma epidérmica para a música. Assistimos actualmente na música portuguesa a uma praga de gafanhotos, perdão, “cantautores”! Se a primeira vaga de “cantautores” da FlorCaveira tinha piada por causa da militância (o seu cristianismo protestante Baptista), um aparelho DIY e conceitos exóticos (“panque roque do Senhor”, “panque medieval”, etc…), pouco a pouco, como aliás é habitual quando uma “cena” aumenta de importância e de exposição pública foi-se amansando como um cachorrinho caseiro. A excepção a este rame-rame é Tiago Guillul que instiga, grava e edita como um louco, sendo capaz de ir ao fundo da questão, sem se deixar cair nas fórmulas comerciais fáceis, roubando samplers ao Punk, ao Metal e à World Music para criar os seus discursos com fundo original e independente – coisa que rareia na música portuguesa em particular e na criação em geral. Guillul é um pregador, ora um pregador prega! Tem de estar atento ao mundo e não se fechar em copas, não pode parar com figuras de estilo e discursos vazios. Não é preciso cursos de semiótica para se perceber que Guillul fala dos (nossos) tempos nos seus relatos, independentemente da mensagem cristã, é dos poucos músicos que faz um retrato da sociedade portuguesa no século XXI. Outro ponto a favor… Entretanto, a tempo e a horas aparece o sexto disco de Guillul, intitulado Amamos Duvall(FlorCaveira + Um Disco Pronto e Sincero; 2012), um álbum duplo, anacronismo marado, uma vez que os CDs conseguem ter 80min de música e estes dois CDs não chegam a tal. Mas Guillul é um “artista bruto” com educação e programa filosófico próprio que apesar de não ser um caso clínico (como Daniel Johnson e afins), não deixa de ser interessante fazer um paralelo com estes “doidos visionários”. Guillul, como esses outros autores, não se desvia da sua senda, daí que mantem as características que nos habitou no passado, como as canções com contos autobiográficos, alguns com intervenções directas das suas crias; aparece sempre uma crítica social alinhada à sua postura retrógrada que tanto soa a brilhante como o tema “Estás casado com o Estado” em que a letra é uma explícita caricatura do artista rebelde - Espera aí que estás casado com o Estado / mas queres fazer figura de solteirão -, ou pode ser completamente irresponsável como “Faz Filhos”, em que Guillul com orgulho de Velho Testamento exibe os seus 4 filhos na contra-capa do disco e neste tema em especial apela à reprodução da nossa horrível raça. Claro que há um humor em toda esta criação mesmo que seja um humor Baptista que não se possa perceber na totalidade. Parece um misto de Fungagá da Bicharada, teeny-boopy deslocado, folktrónica e vanguarda indesejada. Tal como os “artistas brutos”, Guillul é genial, nas suas produções onde tanto entram Ratos de Porão como Stealing Orchestra, Justin Bieber ou Chuva na Areia… O álbum duplo só se justifica por um excesso de produção como é típico dos “brutos”, espíritos inquietos e criativos que Guillul cada vez mais se revela como tal. [Marcos Farrajota – Chili Com Carne]

DISCOGRAFIA

 
FADOS PARA O APOCALIPSE CONTRA A BABILÓNIA [CD, Flor Caveira, 2002]

 
MAIS DEZ FADOS RELIGIOSOS [CD, Flor Caveira, 2003]

 
QUER SER O LEPROSO QUE AGRADECE [CD, Flor Caveira, 2004]

 
IV [CD, Flor Caveira, 2008]

 
V [LP, Flor Caveira, 2010]

 
V [CD, Flor Caveira, 2010]

 
O AQUECIMENTO DO LENDÁRIO HOMEM PINGUIM [CD, Flor Caveira, 2011]

 
AMAMOS DUVALL [2xCD, Flor Caveira, 2012]


SOU IMORTAL ATÉ QUE DEUS... [CD, Flor Caveira, 2015]

OUTROS

 
O VERÃO NOSTÁLGICO [CD, Flor Caveira, 2009]

 
GUEL, GUILLUL & O COMBOIO FANTASMA [CD, Flor Caveira, 2003]

 
VARIAÇÕES & LUTERO [CD, Flor Caveira, 2009]

COMPILAÇÕES

 
A FLORCAVEIRA APRESENTA O ADVENTO [CD, Flor Caveira, 2008]

 
3 PISTAS VOL. 2 [2xCD, iPlay, 2009]

 
T(H)REE 1.5 [MP3, Mimi Records, 2011]