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sexta-feira, 21 de julho de 2017

JOÃO CORAÇÃO

Daniel de Castro Ruivo nasceu no início dos anos 80 no Restelo, em Lisboa, onde viveu até aos 8 anos de idade. Mudou-se depois com a família para Aveiro, onde ficou até aos 18 anos. Seguiu-se nova mudança para o Porto, onde chegou a cursar Arquitectura, que viria a abandonar, bem como o curso de Som e Imagem. Regressa novamente a Lisboa, inscrevendo-se no curso de Cinema. Cria bandas sonoras para filmes imaginários como projecto de final de curso, mas não chega a trabalhar na área do cinema. Durante o curso trava conhecimento com o colega Manuel Fúria (d’Os Golpes), com o qual congemina a criação da editora Amor Fúria. Fica tão obsessivamente absorvido pelo projecto da editora que acaba por abandoná-lo, para se conseguir libertar para fazer outras coisas. Conhecemo-lo depois, já sob o nome de João Coração inserido no grupo de artistas que gravita em torno da editora FlorCaveira. João Coração tem aquela pinta de aristocrata diletante, sempre renitente sobre qual o rumo a seguir, acometido por uma indolência transcendental – esteve para ser arquitecto e acabou a estudar cinema, andou anos a compor sem nunca terminar uma canção, até que de repente, enquanto tocava viola por cima de uma música que estava a ouvir, surgiu-lhe uma canção e depois escreveu umas 50 ou 60 de assentada em cerca de três meses. Até essa altura, “tinha instrumentos, fazia músicas, brincava aos falsetes, mas nunca tinha feito uma canção". Os temas do seu primeiro disco editado em 2008, de título “Nº1. Sessão de Cezimbra”, apresentam-se crus, quase na forma em que foram surgindo e sendo gravados no mini disc que trazia consigo. No Outono de 2007, arregimentou Tiago Guillul, Manuel Fúria, Jorge Cruz, Samuel Úria, Guel Sousa, Bernardo Barata, entre outros, sem lhes dar qualquer pista sobre o que pretendia gravar, conduzindo-os para uma casa em Sesimbra apinhada de todo o tipo de instrumentos “tinha jogos de sinos, um Rhodes, piano eléctrico, braguesas. Eu pegava na viola e cada um pegava no instrumento que queria e fazia o que queria". Quando os músicos começavam a interiorizar a música, punham a gravar, fazendo no máximo três versões, nunca ficando nada completamente finalizado. Ao longo dos 13 temas que compõem o disco, a mulher é o tema catalisador, ora em tons de romantismo tingido de negro, ora como pretexto para falar de outros temas. O disco é outonal, nocturno, com canções presas por fios ténues, sempre à beira de desconjuntar-se a qualquer momento. A instrumentação é variada e estranha ao universo pop/rock mais convencional: vibrafone, braguesa, acordeão, bombo, mini-harpa, megafone, caixa de ritmos comprada na feira da ladra, metalofone, kalimba, etc. Por vezes, navega num universo mais tradicional tutelado por Fausto, outras vezes faz recordar o Tom Waits dos primórdios. Os arranjos, aparentando uma falsa simplicidade, dão o enquadramento certo à voz idiossincrática de João Coração. O disco, resultando da reunião ocasional de um conjunto excepcional de músicos, apresenta-se como uma obra pessoal e imprevisível, com ideias próprias ao nível da construção melódica e da escrita de canções, que apesar da sua aparência inacabada, não são propriamente experimentalistas, estando mais próximas de uma matriz clássica. Pouco tempo depois, em Junho de 2009, edita novo disco “Muda que Muda” outra vez através da FlorCaveira, um trabalho mais luminoso, mais festivo e estival, com um pendor assumidamente pop. O leque de colaboradores altera-se significativamente em relação ao disco anterior, mantendo-se o contributo de Jorge Cruz e Lúcia Vaz Pato numa ou outra música. De resto, destaque para Walter Benjamin que aparece em cinco temas. Tocam também Cão da Morte, Manuel Dordio, Miguel Gelpi, Carolina Bastos e outros. O rol de instrumentos utilizados continua a ser bastante diversificado. Assumindo uma orgulhosa falta de coerência, João Coração muda completamente o tom em relação ao seu primeiro disco. Tudo é diferente: começando pela capa do disco: ao instantâneo nocturno e acabrunhado fotografado por André Príncipe para a “Sessão de Cezimbra”, sucede-se um retrato radioso tirado por Vera Marmelo, com um João Coração de sobrancelha franzida e camisa desabotoada, com a pelugem do peito à mostra. Aos sussurros do disco anterior, contrapõe agora falsetes, coros em barda, palminhas, acordeão e tudo o mais que estivesse à mão para abanar a anca numa libertação hedonista. Do torpor melancólico e do cheiro a maresia de “Cezimbra”, somos agora convidados para um martini à beira da piscina ao final da tarde. A voz aparece muito mais solta, as melodias são imediatas e como quem não quer a coisa, João Coração arranca um punhado de grandes canções. Aqui e ali, vislumbra-se a sombra de Gainsbourg, Chico Buarque, Belle & Sebastian, e até dos Talking Heads (no final do tema “Muda que Muda”, um coro intrépido de cabeças falantes canta “Vou a caminho de nada, entrem comigo.”). Os nove temas que compõem ”Muda que Muda”, o último deles um breve instrumental a fechar o disco, são uma espécie de reverso de “Nº1. Sessão de Cezimbra”, uma outra face inesperada e surpreendente. Depois destes dois discos, para onde caminhará João Coração?

DISCOGRAFIA

 

Nº1. SESSÃO DE CEZIMBRA [CD, FlorCaveira, 2008]


SESSÃO DE SANTA MARIA DOS OLIVAIS [MP3, FlorCaveira, 2008]

 
MUDA QUE MUDA [CD, FlorCaveira, 2009]


CANÇÕES PERDIDAS [MP3, FlorCaveira, 2009]

COMPILAÇÕES

 
A FLORCAVEIRA APRESENTA O ADVENTO [CD, Flor Caveira, 2008]

PRESS
Vagabundo de Pantufas, João Bonifácio, Ípsilon, 21-11-2008
Guillul, Coração, Úria Inventam um País, João Bonifácio, Ípsilon, 21-11-2008
Um Cantor que Teme o Consenso, Luís Filipe Rodrigues, DN, 18-07-2009